segunda-feira, agosto 30, 2010

Há fogo na Aldeia!



poema inédito do poeta Brissos Lino


Há fogo na aldeia!
debitam velhos urubus
de boca desdentada
atirando os olhos para longe
olha, olha! gritam os gaiatos
que brincam na rua
valha-nos Deus!
cospem os velhos sentados
à porta da taberna
na mornidão da tarde
enquanto os bombeiros correm
contra o tempo
e a dor. Nada que não se resolva
exclama o presidente
da Junta
cansados desta agitação soalheira
os velhos bebem mais um copo
os gaiatos voltam ao jogo da bola
os urubus tornam a baixar os olhos
ao tricot
e os bombeiros continuam
a correr contra o tempo
e a dor.

27/8/10

sábado, agosto 28, 2010

O Castanheiro de Ana Frank

Foto: El País.

Ana seguia as estações pelas folhas
do castanheiro, um detalhe
sem ruído
podia ver-se das janelas
vigiadas
o castanheiro de Ana Frank
o vento preso aos ramos
a primavera e o outono
o triste voo das folhas, podiam
ver-se desde a casa
de onde os olhos de Ana
na floresta, se evadiam.

25/8/2010
Publicado ineditamente no blogue do poeta Brissos Lino

segunda-feira, agosto 23, 2010

O suicídio do Poeta

"Fugido de alguma vigia de metro, cave ou sótão,
Um lunático precipita-se para os teus parapeitos"
Hart Crane, The Bridge of Brooklyn, trad. de João de Mancelos


Atraído pelas águas lavradas
pelo rasto de prata do navio
Hart Crane brilhou
no ar
Os bicos berrantes
das gaivotas ensaiavam
No Golfo do México
cortaram o espaço
entre as nuvens e a espuma
O dia derradeiro
Crane tomou-o nos seus braços.

28/7/2010

segunda-feira, agosto 16, 2010

Poesia para a Música: Schubert

Poema inédito oferecido pela Autora, minha amiga de infância.

A voz que ouvi não era o ramo que tombava breve
Na floresta
Era o suave toque de uma asa repentina ou mesmo um pássaro
Assustado que se escondia
A voz não era o ondular do piano mansamente
Na imensa sala dos meus olhos
Era um cheiro de terra e orvalho
Um sopro morno que abraçava e enlaçava o corpo
Lá nesse lugar onde a alma estremece.
Depois parou.
(Clélia Inácio Mendes)

sexta-feira, agosto 13, 2010

Uma bela viagem para Ítaca


Uma bela viagem deu-te Ítaca.
(Kaváfis)

Se pensas regressar a Ítaca
escolhe o amplo mar
não te percas nas esquinas
da tua mente, nos espelhos
que mostram o teu rosto
Vai como estás, tu apenas
és a única equipagem
Se partires um dia rumo a Ítaca
não penses
que o sal e o orvalho das manhãs
impedirão as cãs no teu cabelo

Não há Penélope nem Telémaco
que te esperem
nem cão, porque chegas contra o vento.

7/8/2010

Poema publicado originalmente (inédito) em A Ovelha Perdida

quarta-feira, agosto 11, 2010

Finalmente a Guerra

“E a guerra acabou sem chegar cá.”
(Manuel Alegre, Alma)


Finalmente a guerra
frenesim inusitado
quando mil sóis explodem
num tempo esconso
e o rasto dos cometas é vermelho
e fogo
o negrume passeia pelas caras
dos mancebos
o medo pendurado nos olhos
de mulheres e velhos
crianças que constroem castelos de lama
e faz de conta
na neve suja
entre estampidos e sorrisos
Era uma vez uma guerra anunciada
dizia-se que andava para lá
daqueles montes
mas morreu antes de chegar à aldeia
deste lado do mundo
a este cu de judas
nem uma guerra chega.

4/8/10
Inédito do poeta Brissos Lino

segunda-feira, agosto 09, 2010

Lição sobre como acabar um poema

ATÉ AO FIM

Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

(Nuno Judíce)

terça-feira, agosto 03, 2010

O que disse o silêncio das pedras de Jericó


JERICÓ

Buzinas quebraram grossas muralhas
feitas de silêncio e soberba
nem os vigias cananitas conseguiram
saber a tempo o som telúrico
lançado contra as pedras
e evitar a destruição
as pedras de Jericó disseram
que passado um revolto Jordão
tudo é possível.

23/7/10


(Brissos Lino)

segunda-feira, agosto 02, 2010

Duas poiéticas que levam a obra a Abril



Se na poesia contemporânea portuguesa há dois poetas distintos no seu discurso poético e na sua poiética (o modo de construir seus poemas), são, sem dúvida, José Gomes Ferreira e António Ramos Rosa.

Aquele trabalhava a metáfora lírica, grande parte dos poemas inserindo-se mesmo no que poderíamos dizer proximidade do surrealismo, mesmo nos seus poemas cujos referentes eram Memórias, «Na infância da janela do primeiro andar/ aquela rapariga de corcel nos cabelos» ou «O sol corria/ nos bibes do vento»;

Ramos Rosa, por seu turno, está integralmente dedicado à poesia pura, e não encontro melhor exemplo do que o conteúdo do seu livro “Ocupação do Espaço”, e o das suas mais recentes obras. Poeta da linguagem, talvez o Saussure ou o Roman Jakobson das relações entre linguística poética e a ciência dos homens, uma antropologia no poema: «Oiço os murmúrios do sol. Saboreio o que sou.» ou «tenho o coração confundido e a rua é estreita», «soletro velhas palavras generosas» «Não posso adiar o amor para outro século»
É interessante pois notar um pequeno poema de ARR cujos referentes são dois: Abril e o próprio Ferreira, o autor de Memória das Palavras. O gosto de falar de um poeta, fazendo-o crescer por detrás do sol, evocando-o profeticamente, sem a prisão cristalina e rochosa da Sibila (que não tem lugar na Poesia), como “homem de Abril”.
O mês de Abril sempre surgiu nos poetas com a força das suas próprias raízes, que despontam, ancestrais. Desde Chaucer ( When April with his showers sweet with fruit) a Withman, até ao definitivo “Abril é o mais cruel dos meses, gerando / Lilases na terra morta).